A atual conjuntura de consumo, a avidez pela imagem, o individualismo, a perda das garantias religiosas, o superinvestimento narcísico colocam novas questões para cada um de nós. O apelo ao consumo tem feito pais se extenuarem para oferecerem objetos para os filhos sobre o preço de se ausentarem do lado deles. A cultura da imagem e das postagens de imagens de cada atividade do dia a dia dá a falsa impressão de que todo mundo está se divertindo menos você, o que tem incrementado os quadros depressivos já epidêmicos. Nessa lógica, acredita-se também que todas as outras pessoas estão muito mais felizes com os filhos e conseguindo se sair perfeitamente bem, o que, apesar de ser mentira, costuma abalar pais/mães já habitualmente culpados. É difícil assumir uma tarefa que envolve tanta dedicação ao outro, diante do culto ao individualismo e à realização pessoal. É necessária certa abnegação para que a parentalidade seja exercida.
Grosso modo, filhos nos impõem, pelo menos, dois grandes desafios. Um é o clássico trabalho braçal de cuidar, no qual somos implicados fisicamente. Para dar conta da dependência absoluta do começo se faz necessário que alguém se ocupe dos choros, da fome, do frio e dos desconfortos em geral. Horas sem dormir, ocupação e preocupação constantes, ansiedade com os desejos indecifráveis extenuam e levam ao arrependimento até o pai/mãe mais convicto. Com o tempo, a corda afrouxa um pouco, mas são décadas até que a excessiva ocupação dê lugar para a permanente preocupação até uma despreocupação possível. Esse tema costuma pesar bastante na balança da escolha, mais ou menos consciente, de se ter ou não filhos. Mas não é aí que se encontra o aspecto mais intenso da escolha. O outro desafio surpreende os pais desavisados. A tarefa bem mais complexa e interessante justifica os anos de trabalho anteriormente descritos e diz respeito, digamos, a ser a tachinha no mapa de alguém. Seremos nós a ocupar o lugar no qual estavam nossos pais, que sempre nos foi enigmático. Projetamos neles um saber sobre a origem da vida, nossa vida, e chegou a hora de saber o que nossos pais sabiam. Esse segundo desafio, que se tornar pai ou mãe nos coloca e que não costumamos antecipar, revela o que nossos pais sabiam, quando nos tiveram: quase nada. O grande susto é descobrir que fomos gerados por pessoas tão despreparadas para a experiência quanto nós. Podemos reproduzir a vida, podemos reproduzir corpos, transmitir o nome, a cultura, as heranças materiais, simbólicas, podemos amar desesperadamente e, ainda assim, continuarmos ignorantes sobre os fatos mais importantes da nossa existência. Temos os filhos, assim como nossos pais nos tiveram, e ainda assim não sabemos nada sobre a origem da humanidade. Algo sobre a existência humana permanece insondável e surpreendente.
Não há, nunca houve e jamais haverá garantia. Qualquer tratamento ou objeto que for usado para fomentar a falsa ideia de que haveria o tão sonhado controle e prevenção no que tange a parentalidade implica má-fé. A culpa estratosférica que os pais/mães têm carregado por tudo que acontece com os filhos é, paradoxalmente, um dos grandes males da criação deles hoje em dia. Ficam tão inibidos diante dos riscos inerentes à vida que acabam não curtindo as relações e impedem que as crianças tenham experiências enriquecedoras.
Por vezes, os adultos assumem a ideia de “não sou perfeito” mais no lugar de um pedido de desculpas do que do reconhecimento de que esse é um fato estrutural e incontornável. Ou seja, não podemos ser perfeitos em nada nessa vida. Quanto mais maduros nos tornamos, mais somos capazes de fazer o luto dessa fantasia e assumir nossas limitações como uma real condição, não como um defeito. Uma vida sem riscos é uma vida sem acontecimentos e sem experiências, e por efeito uma vida sem emoções e com pouco sentido.
Isso não quer dizer que devemos realizar tudo o que pensamos e desejamos. Por vezes, o nosso desejo nem sempre combina com aquilo que pensamos de nós. Podemos levar algum tempo para descobrir ou não o nosso desejo, por medo de encará-lo. O primeiro censor do desejo, o maior carrasco que nos acompanha, somos nós mesmos. Às vezes, os desejos parecem inconfessáveis e alguns são claramente antissociais. Mas se você pretende lidar com algo tão perturbador a seu respeito, é preferível que saiba o que é do que ficar sofrendo seus efeitos à revelia. O desejo sempre encontra um jeito de se expressar e causar aquele embaraço que todos conhecemos e que costuma ser usado em filmes cômicos. Os sonhos, os lapsos, os atos falhos já são bem conhecidos como aquilo que revela nossas mais bizarras inclinações. Talvez você deseje algo que aos seus olhos é recriminável, e, de fato, não temos controle sobre o nosso desejo. Mas desejar não é realizar e sempre podemos se soubermos o que está em jogo, evitar sua concretização. A questão ética aparece aqui e implica assumir as consequências sobre o desejo e o ato que dele pode decorrer. É aí que entra a escolha do que se perde e do que se ganha bancando o desejo. Não existe sociedade humana sem renúncia. De fato, a civilização se fundamenta na renúncia de parte dos desejos e impulsos. Sem esse gesto não teríamos a menor condição de sobreviver enquanto espécie, estabelecendo os laços que nos são tão caros. Mas tampouco existe uma vida digna sem alguma satisfação.
Daí a dificuldade de ensinarmos os filhos a assumirem também sua parte nas escolhas e, principalmente, nas consequências dessas escolhas. Uma estranha inversão tem se mostrado na educação das crianças. Em nome de uma suposta democratização do laço com os filhos se esquece de que o espectro de escolha que lhes diz respeito é restrito à sua potência em realizar a escolha e assumir as consequências. Pensemos no adolescente que antes da idade permitida pela lei já sabe dirigir perfeitamente. Ele tem competência para dirigir, mas provavelmente não terá maturidade para se comportar adequadamente diante de um eventual acidente e, por certo, não responderá perante a lei às consequências do ato de dirigir. Então, não se trata de saber dirigir em termos de habilidade, mas de poder assumir seus atos. Um exemplo mais banal, da criança que faz exigências aos pais que, por sua vez, se sentem na obrigação de atender. Cabe perguntar qual o poder de escolha de uma criança que depende inteiramente dos adultos. Como ela poderia avaliar as implicações do seu pedido? Só os responsáveis podem entender a complexidade de determinadas escolhas e nem sempre a criança tem sequer a capacidade de alcançar as razões da negativa. Cabe aos pais sustentarem os não, baseados na sua autoridade e no seu papel de indicar o que consideram melhor para a criança. Uma das consequências desse posicionamento é a fúria de crianças e adolescentes, que os pais tentam evitar a todo custo, cedendo muito frequentemente. Essa escolha cobra seu preço na cena seguinte, pois aprendendo que é só uma questão de tempo para os pais cederem, a criança não hesitará em continuar insistindo até conseguir.
Alguns pais costumam descrever que os filhos são “intensos”, com “forte personalidade”, enfim, a tirania dos pequenos é alçada a traço de caráter irreversível. O que vemos de fato é que os pais escolhem abrir mão da autoridade por medo de se tornarem autoritários e de despertar o ódio dos filhos por eles. Ao fazerem isso, saem inteiramente de seu papel, que é de suportar esse ódio, já que sua função é de estraga-prazeres mesmo. Se eles não fazem isso, as relações fora de casa o farão. Seja na escola, no contato com outras crianças e adultos, seja na entrada no mercado de trabalho, o mundo não terá como privilegiar cada criança eternamente e teremos jovens amedrontados ou inibidos, sem a menor chance de adquirir autonomia. A insistência de jovens e crianças é proporcional à permissividade dos pais, pois o cérebro infantil não gasta energia em tarefas que não tenham alguma chance de dar certo. Conforme elas vão percebendo a consistência (o quanto o limite é firme), coerência (o quanto o mesmo limite se repete em circunstâncias similares), mais a criança vai se convencer de que não adianta espernear.
A questão é que o limite seja convincente, seja razoável. Não podemos manter todas as fichas na capacidade de convencimento, pois as crianças, como vimos, nem sempre têm condições de entender tudo o que está em jogo. Esse é um ponto em que pais têm se perdido, sustentando explicações infindáveis na esperança de que a criança acabe concordando e ficando de bem com eles. Novamente, a busca de um Ibope junto aos filhos põe a parentalidade em maus lençóis. Na dúvida, escolha educar no lugar de seduzir. É bem mais fácil em longo prazo e ajudará seus filhos a bancarem suas próprias escolhas oportunamente.
EDUCAÇÃO
A finalidade da educação é a instauração do princípio de realidade, ajudando a criança a renunciar ao seu modo de funcionamento quase todo submetido ao princípio do prazer. Sendo assim, o ato educativo se refere à inscrição de marcas que operam a passagem de pura satisfação das pulsões para um universo simbólico onde a lei, representada pela palavra do Outro, pelo Nome-do-Pai introduz o futuro sujeito ao “civilizado”. Dessa forma, entendemos que todo ato educativo refere-se a operações de transmissão – de um legado, de um saber, de um desejo – e de transformação – da carne, ao sujeito.
Para Freud, educar é transferir um legado de pai para filho. Partindo da suposição de que a relação pedagógica está implícita na relação humana, a educação se desenvolve muito mais pelo laço que se estabelece do que pelo conhecimento adquirido que expressamos ao outro. Nesse sentido, pensar a educação no âmbito do enlaçamento que um faz com o outro exige introduzir a subjetividade num campo em que o saber fazer normalmente se sobrepõe ao saber ser.
Somente se o professor/pais ocuparem esse lugar de saber é que suas palavras terão poder suficiente para ser ouvidas pelo aluno/filho como algo que anime seu interesse. Não adiantam as técnicas pedagógicas mais atuais, o aparato mais moderno se esse pequeno detalhe não estiver em jogo. Da educação infantil à universidade, a transferência torna-se a mola propulsora do processo ensino aprendizagem.
A transferência não é um termo específico da psicanálise. É um vocábulo utilizado em diversos campos, denotando sempre uma ideia de transporte, de deslocamento, de substituição de um lugar para outro. A teoria freudiana reconhece nesse fenômeno um elemento fundamental no transcorrer do tratamento e do processo de cura. Trata-se de um fenômeno psíquico presente em todas as relações humanas: médico e paciente, professor e aluno, mestre e discípulo etc.
“No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los”. (FREUD, 1914, p. 286).
Nesse sentido, destaca-se a ideia de que a figura que pode ser a substituta nessa operação transferencial é o professor. Assim, o professor é convocado a ocupar um lugar que transcende a prática pedagógica, na medida em que se torna suporte dos investimentos libidinais de seu aluno, já que é objeto de uma transferência. Mais além da figura pessoal do professor, o educador vai representar, para o aluno, uma função, substituindo, nesse momento, as figuras parentais e/ou pessoas que lhe foram importantes, representando então esse lugar de saber, de idealização e de poder. Implica, portanto, em uma relação afetiva e, por isso, sempre ambivalente (amódio).
Neste sentido, a palavra passa a ter um significado muito forte na educação. O professor só vai poder ser reconhecido nessa posição de saber pelo aluno se a palavra do professor não for uma palavra qualquer, ou seja, se a palavra do professor for reconhecida e autorizada como, realmente, um “lugar de saber”.
Sabendo disso, um professor poderia se colocar como um interlocutor qualificado, no sentido de reconhecer essa dimensão que está relacionada com o fenômeno da transferência, e participar de modo mais consciente na educação do aluno, sem deixar de exercer a sua função, que é a de ensinar, visto que, cada vez mais, a escola passa a ser um lugar em que a criança-aluno permanece a maior parte do seu dia.
O aluno “[…] precisa dirigir sua fala a alguém para que esta retorne, e ele a ouça. Não se ouve se não usar esse recurso” (KUPFER, 2000, p. 138). Talvez aí resida uma segunda chance da criança-aluno poder encontrar um interlocutor depois da família. Isso poderá fazer uma diferença na sua vida.
Para que o ensino e a transmissão sejam possíveis e realizáveis é necessário poder suportar subjetivamente a angústia de uma posição discursiva que implica renunciar à onipotência narcísica e aos ideais de grandeza e de perfeição, fazendo semblante de saber, ocupando o lugar de Mestre, de Mestre barrado.
Mesmo que barrado – e talvez por isso mesmo – o educador nesse discurso é o mestre que encarna as insígnias da instituição, investido também pela autorização parental para exercer essa função junto aos alunos. Dele não se espera um saber catedrático, mas que saiba fazer o outro saber o que fazer. Balizar a educação a partir do discurso do Mestre impõe considerar que há tanto no lugar do educador – agente – quanto do educante – outro – um saber que opera, um saber sobre o impossível de tudo saber.
Alguém que pretenda ocupar o lugar de um saber sem falhas, totalizante, de colonizador do real, convida o outro a permanecer numa condição de assujeitamento e alienação absolutos. Ao submeter-se a esse imperativo categórico de continuar a saber, sempre mais, toda questão em direção à verdade será silenciada.
Enquanto na educação o sujeito contemplado é o do conhecimento, cognitivo, passível de mensuração, o sujeito do qual ocupa-se a psicanálise é o sujeito do inconsciente enquanto manifestação única, singular, não mensurável e que, por isso, não pode fazer parte do concretamente observável.
A partir desse conhecimento o professor pode através de uma ética, levar em conta os fenômenos inconscientes presentes na relação com os alunos e ajudá-los a avançar diante das muitas questões que os mesmos encontram no curso de sua trajetória escolar.