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Ensinar sem castigar

Entrevisda ANA TEBEROSKY (REVISTA VEJA, 26 DE ABRIL, 1995) – Psicóloga explica que cada criança tem seu próprio jeito de aprender e que os professores devem perder a mania de reprovar alunos. (FLÁVIA VARELLA)

Com  sua  formação acadêmica. a psicóloga argentina Ana Teberosky. 50 anos, poderia ler construído sua carreira num consultório com divã. Em vez disso, preteriu estudar o pensamento infantil na prática. Tentando captar como as crianças se viram para vencer uma etapa fundamental da existência — aquela em que se aprende a ler e a escrever —, ela foi observá-las nas salas de aula. Após centenas de pesquisas e testes, em 1979 publicou suas primeiras conclusões num  livro   de   título complicado, Psicogênese da Língua Escrita, em co-autoria   com   a   psicopedagoga Emilia Ferreiro, também argentina.  De lá para cá, a obra acabou firmando-se como uma das mais ricas da pedagogia mundial. Ao desvendar o processo do aprendizado infantil, as duas mostraram que a alfabetização da criança não depende tanto do método do ensino, mas ocorre de modo quase natural e é personalizada — segundo elas, cada criança desenvolve sua própria maneira de aprender a ler e a escrever, e é a esse processo que professores e  pais devem prestar mais atenção.
Os estudos tiveram grande repercussão e foram encaixados numa linha de pensamento chamada de construtivismo. No Brasil e em outros países da América Latina chegou-se a acreditar que suas idéias poderiam resolver catástrofes nacionais como a evasão escolar e o alto índice de reprovações. Ana Teberosky não gosta de ser chamada de construtivista nem acha justo que suas idéias recebam um rótulo. Tampouco está convencida de que lenha descoberto alguma poção mágica para resolver problemas tão antigos e tão graves. Ela prefere dizer que continua aprendendo com os pequenos. E gostaria que as autoridades educacionais fizessem o mesmo. Há vinte anos Teberosky mudou-se para a Espanha, onde dá aulas na Universidade de Barcelona. Aqui, tem como orientanda a pedagoga Beatriz. Cardoso, filha do presidente Fernando Henrique Cardoso. Há poucos dias, em visita ao Brasil, onde prepara o lançamento de “Além da Alfabetização”, seu quinto livro publicado no país. Ana Teberosky deu a seguinte entrevista a VEJA:

VEJA — O Brasil tem índices muito altos analfabetismo, mesmo se comparado com países onde a renda per capita da população é até menor. Esse é um drama tão antigo que já há quem diga que o problema estaria na língua portuguesa…
TEBEROSKY — Existem, mesmo, graus diferentes de dificuldade para aprender um idioma. A língua mais difícil é aquela na qual a fornia escrita é mais diferente da fornia falada. Por esse critério, o português se encontra numa situação intermediária. Talvez, existam poucas línguas tão fáceis de dominar como o espanhol. Já o inglês é bem mais difícil. Mas, para um brasileiro, que vive num ambiente onde se fala português, essa língua é a mais fácil, sem dúvida.

VEJA — E onde está o problema?
TEBEROSKY — Uma questão importante c a formação dos professores. Talvez não seja o maior problema, mas é uma questão grave. É verdade que, no Brasil os  professores ganham pouco. E também é verdade que se ganhassem mais, poderiam viver melhor, ter mais informação, aperfeiçoar-se e, dessa maneira, seriam capazes de ensinar melhor. Mas a questão não é só essa.

VEJA — Qual a principal deficiência na formação dos professores?
TEBEROSKY — Para começar, não se exige diploma universitário para professores da educação infantil. E isso é decisivo. Numa faculdade, o professor fica sabendo muito mais sobre psicologia infantil, sobre pedagogia e sobre os assuntos que irá ensinar. Não há dúvida de que nos países que fazem essa exigência — e faz quem pode — o ensino básico é melhor que o brasileiro. Quem tem pouca leitura tem muita dificuldade para ensinar a ler.

VEJA — Alguns estudiosos dizem que, além dei formação, existe um problema de mentalidade. Fala-se, por exemplo, que a maioria dos professores, no Brasil, está convencida que  um bom mestre é aquele que reprova um grande número de alunos. A senhora concorda?
TEBEROSKY — A escola, enquanto instituição tem a função social de dar certificados. Isso implica aprovar e reprovar. Mas a experiência mostra que a reprovação não contribui para ensinar melhor. Especialmente quando falamos de ensino básico. Uma criança reprovada sente-se apenas anulada. Não melhora seu aprendizado. O que é necessário é encontrai’ formas ide fazer a criança aprender, e não reprovada. Quando reprovam um aluno, muitos professores acham que a responsabilidade é apenas da criança. Não vêem que é grande á possibilidade de que a maior falha seja deles próprios. Alguns professores pensam que é só o aluno que tem de se esforçar. A criança com dificuldade exige mais tempo do professor e mais esforço dele. Em geral, os professores não fazem esse esforço a mais e decidem de maneira punitiva.

VEJA — O que se pode Jazer em lugar fie reprovar?
TEBEROSKY — Fazer o possível para que a pessoa aprenda. Eu acho que deixar o professor decidir sozinho se um aluno vai ser reprovado é dar-lhe muita responsabilidade. Isso afeta muito uma criança. Repetir o ano não é dizer que a pessoa nau aprendeu nem que é incapaz de aprender. É apenas registrar que um aluno não aprendeu aquilo que se esperava dele em determinado espaço de tempo. Como definir esse tempo, se todos nós sabemos que ele pode variar de pessoa para pessoa?

VEJA— Como avaliar sem punir?
TEBEROSKY — Uma professora brasileira disse-me que determinado aluno era insuficiente. Acho isso um absurdo. Não se pode decretar isso a respeito de alguém. É muito mais eficiente dizer à criança o que fazer para melhorar. Apontar um erro para um aluno só adianta se ele tiver condições de saber que aquilo é um erro. Se não souber, o efeito restringe-se a uma punição da conduta, mas não afetará a compreensão.

VEJA — Mas não se pode colocar a culpa da ineficiência da educação brasileira apenas nos professores.
TEBEROSKY — Certamente que não. Até porque, como acontece em qualquer país, no Brasil existem escolas muito boas e outras muito fracas. Um fato já diagnosticado é que o verdadeiro controle social sobre a qualidade da educação, hoje, é realizado pelas famílias. A família que tem conhecimento, cultura tenta influir na qualidade da educação de seu filho. Faz isso de várias maneiras. Desde pressionar a própria escola até transferir o filho para outro estabelecimento. Já a família que não tem cultura não tem meios para fazer esse controle. E essa a tragédia. Na educação também observamos aquela regra de que carência só costuma atrair mais carência. As escolas piores ficam nos bairros piores, onde os professores também são piores, e as famílias não têm instrumentos para encarar essa situação. É para esses casos, especialmente, que deve entrar a ação do governo. Uma das responsabilidades de qualquer governo é garantir que a qualidade seja mantida mesmo onde não há exigências da família.

“O ambiente em casa é tão importante que é até correto supor que uma criança, com estímulo familiar favorável, possa tornar-se uma autodidata e aprender a ler e escrever sozinha. Por isso se diz que o primeiro ambiente alfabetizador
não é a escola, mas a família, que ensina de maneira implícita”

VEJA — A junção cios pais nesse controle é mesmo importante? TEBEROSKY — Isso já é uma tendência mundial. Na Espanha, por exemplo, muitas escolas tiveram de alterar seus programas de educação religiosa por pressão dos pais. O resultado é que em algumas escolas existe ensino religioso e em outras, não.

VEJA — A família também tem um papel relevante no próprio aprendizado?
TEBEROSKY — Hoje em dia, em nossas sociedades, a alfabetização já não pode ser considerada uma coisa artificial na vida de uma pessoa. É um processo natural que decorre da curiosidade da criança. Do mesmo modo que não há um método para ensinar a falar, não há um só método para escrever. O ambiente em casa é tão importante que é até correto supor que uma criança, com estímulo familiar favorável, possa tomar-se uma autodidata c aprender a
ler e escrever sozinha. Por isso se diz que o primeiro ambiente alfabetizador não é a escola nem a pré-escola, mas a família, que ensina os filhos, mesmo que seja de maneira indireta ou implícita.

VEJA— Como a família ensina?
TEBEROSKY — Ensina através da presença de uma biblioteca, de jornais e revistas. Ensina porque os pais lêem, escrevem c atuam de acordo com o que lêem, comentando. A família predispõe a criança a aprender. Ajuda ao fazer da leitura e da escrita uma atividade cotidiana.

VEJA — Quando uma criança deve começar a ser alfabetizada?
TEBEROSKY— Em psicologia, usamos um conceito chamado de período crítico, quando uma criança é mais influenciada pelas situações de aprendizagem, quando tem mais sensibilidade para determinado assunto. Esse mesmo conceito é usado para questões emocionais. Entre 8 e 10 meses, a criança cria um vínculo de apego emociona com um membro específico da família. Muitos educadores acreditam que a criança tem um envolvimento com a escrita no período anterior à alfabetização e isso também vai ajudá-la de alguma forma. No mundo de hoje, entre os 5 e os 6 anos a criança fica mais predisposta a se interessar pelo que é escrito, é estimulada por livros, jornais, cartazes de rua

VEJA— Uma criança fora desse ambiente tem outro comportamento?
TEBEROSKY — Está comprovado que se uma criança ficar hospitalizada, sem contato com outras pessoas, durante seu período de maior sensibilidade para o desenvolvimento da fala, que vai de l a 4 anos, ela ser prejudicada na linguagem. Isso é fato.

VEJA — O que as crianças sabem sobre ler e escrever antes de aprender a ler e escrever?
TEBEROSKY— Se a criança tem quem lei,-para ela, no mínimo terá uma intimidade maior com os livros, os papéis, os lápis. Elas aprendem algo sobre escrever antes de saber fazer. Sabem, por exemplo, que lápis. e caneta servem para escrever, não para comer. Parece uma banalidade, mas é uma grande descoberta. Também entendem que existem letras, que as letras têm um nome, que o escrito significa algo sobre o qual normalmente se comenta a respeito. Esse pré-conhecimento ajuda muito.

VEJA — Muitas escolas, hoje, promovem atividades como desenho ou pintura. Do ponto de vista cio aprendizado, e mesmo da alfabetização, isso é útil?
TEBEROSKY — O desenho, a pintura, os números, tudo isso forma um domínio de experiência cultural que tem relações entre si. Não são relações diretas. Não é porque alguém sabe desenhar que saberá escrever ou terá mais facilidade para isso. Mas permitir que a criança pinte a introduz no mundo do simbólico, ao qual a escrita pertence.

VEJA — De que forma o modo como alguém é alfabetizado afeta seu futuro?
TEBEROSKY — Um efeito da boa alfabetização é facilitar a leitura para uma pessoa. Ler nunca será algo penoso. Como a língua tem efeito sobre a mente de uma e sobre a maneira como ela fala, a escolarização influi em sua comunicação com o mundo. Recentemente, iniciei um trabalho com estudantes universitários. Fiquei impressionada. Sua leitura reflete com perfeição um estilo de vida. A leitura é variada, mas eles não se aprofundam em nada. Tenho a impressão de que eles lêem como se estivessem assistindo à televisão com controle remoto. Nunca param num canal. Fazem o que eu chamo de leitura em zapping.

VEJA — A senhora considera que a TV prejudica a leitura?
TEBEROSKY — Assistir à televisão é muito fácil. Ninguém lhe pede que faça nada com o que foi visto, que comente ou explique. A leitura exige mais esforço, porque envolve uma atividade mais complexa. Exige atenção. Com a TV, sua participação é muito baixa. O meio em si não é ruim nem bom. O problema é que é uma assistência passiva e por isso, tem pouca utilidade. Um pai preocupado com a TV precisa conversar com seus filhos sobre o que eles viram na televisão. Perguntar sua opinião sobre os programas, pedir que contem a história que acabaram de ver, e assim por diante.

VEJA — A senhora considera que o computador pode ser útil ao aprendizado?
TEBEROSKY — Comparado com a TV, seu papel é bem diferente. Em primeiro porque já há CD-ROM que são narrativos e informativos e ensinam a criança. Além disso, um computador exige participação. Mesmo no videogame, é preciso pensar. Existe uma interação. O jogo faz você pensar para vencê-lo. Quando me perguntam qual a idade para uma criança começar a usar computador, respondo que quanto antes, melhor.

VEJA — Os pais devem obrigar os filhos a ler, impondo horários para leitura, por exemplo?
TEBEROSKY — O gosto pela leitura se desenvolve mais, lendo para a criança ou fazendo com que ela participe do ato de leitura do que forçando-a a ficar horas diante de um livro. Se for um esforço, vira castigo.

VEJA — Ler muito ensina ortografia?
TEBEROSKY — A quantidade não influi. Para aprender a escrever com a leitura é preciso ler de uma maneira particular, com a atenção voltada para esse objetivo. Para saber o jeito correto de escrever uma palavra é preciso ter dedicado ao menos uma vez na vida uma atenção especial a ela. A leitura para se entreter com uma historinha não terá efeito nenhum sobre a ortografia.

VEJA — Ler muito, então, ajuda a quê?
TEBEROSKY — Todos os alfabetizados têm um léxico mental. Quanto mais se lê, mais amplo é esse léxico. A prática da leitura e da escrita coloca mais elementos nessa memória, tanto de vocabulário quanto de estrutura de textos e frases.

VEJA — No Brasil é muito comum os pais deixarem os filhos pequenos com babás. A senhora acha isso bom?
TEBEROSKY — Se for apenas alfabetizada, como ocorre na maioria dos casos, a babá não poderá ajudar no aprendizado da criança. O ambiente de uma creche é mais indicado, até porque tem outras funções além de “cuidar” da criança. Uma delas é a socialização. Pode-se argumentar que uma babá dá atenção individual à criança, mas eu acho que esse cuidado cabe aos pais, ainda que o tempo disponível seja pequeno.

VEJA — Qual o papel da escola na vida de uma criança?
TEBEROSKY — A escola é a única instituição social que dá a uma pessoa condições de interagir com indivíduos de sua mesma idade. Isso é importante. Propicia a formação de vínculos fortes fora da família. É na escola que se fazem amigos e inimigos, que se arrumam namorados. Essa é uma função social. A educacional pode ser substituída pela família ou por professores particulares, a social, não.

VEJA— Como a função da escola mudou
TEBEROSKY — Houve uma mudança no tipo de interação professor-aluno. Antes ela se dava sob o comando da autoridade, do respeito, da obediência e da passividade. Agora, mais com participação, resposta e proximidade do adulto. Isso não é uma invenção da pedagogia. As próprias sociedades mudaram, evoluíram nesse mesmo sentido. Também mudaram a função e o conteúdo do que se ensina. No século XIX, por exemplo, ensinava-se durante cinco anos a ler para só depois ensinar a escrever. Como muitas crianças deixavam a escola, elas não tinham tempo para aprender a escrever. A escola também passou a dar mais atenção ao aluno como um indivíduo.

VEJA— Como é possível lidar com isso?
TEBEROSKY — Antes, a escola tinha uma função homogeneizadora, tentava transmitir um conhecimento uniforme a todas as crianças. Hoje em dia, as diferenças individuais são cada vez mais evidentes e o professor deve estar muito atento a elas. E esse é um dos dilemas. A escola deve levar em conta a individualidade, mas ao mesmo tempo deve educara todos.

VEJA — De uns tempos para cá, surgiram muitas escolas de línguas estrangeiras, especialmente o inglês, para crianças. A senhora considera que é útil começar o aprendizado de uma segunda língua desde cedo?
TEBEROSKY — Quanto mais cedo se aprende uma língua, melhor. Não há problema em uma criança ser exposta a várias línguas. Elas sabem diferenciar muito bem. Vivo em Barcelona, onde temos uma sociedade bilíngue (fala-se o catalão e o espanhol), e percebo isso no dia-a-dia. Para essa questão, funciona também o conceito de período crítico. Na infância, a criança está mais sensível para aprender a pronúncia correta. Quanto antes aprender  mais chances terá de não ter sotaque. O que eu acho errado é alfabetizar uma criança em língua estrangeira. Esse processo deve ser feito na língua materna. É muito importante aprender outro idioma. Só não se deve deixar a criança correr o risco de não aprender direito nenhuma das línguas.

REVISTA VEJA, 26 DE ABRIL, 1995

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